Não foi por acaso que Bruegel, pintor renascentista do século XVI, usou peixes em sua pintura “Peixe grande come peixe pequeno” para representar a autofagia socioeconômica da sociedade renascentista do continente europeu. Naquela época a zona costeira do Oceano Atlântico Norte era visivelmente farta em peixes de toda espécie, como mostra a obra de Bruegel. No entanto, segundo Callum Roberts, professor de conservação marinha da Universidade de York, Inglaterra e autor do livro “The unnatural history of the sea", toda essa fartura já estava condenada pela pesca comercial cuja origem não é de agora, mas sim nascida e desenvolvida rapidamente em poucas décadas na virada do primeiro para o segundo milênio, entre os séculos X e XI. Até então, a sociedade medieval consumia principalmente peixes de água doce como esturjão, trutas, salmões e enguias que migravam ao longo dos rios, seguindo seus instintos reprodutivos. Com o aumento populacional e a expansão das cidades medievais, quase sempre localizadas às margens de rios com conexão com o mar (Londres/Tâmisa, Paris/Sena), a demanda por alimentos cresceu e os campos agrícolas naturalmente começaram a substituir as florestas e matas ciliares. Com isso foi preciso muito mais água doce para irrigação e para manter girando as rodas d’água dos moinhos de milho que se multiplicavam no continente europeu. Milhares de pequenas barragens foram construídas ao longo das bacias hidrográficas da Europa pelos próprios agricultores e proprietários de terras. A erosão das matas ciliares e a diminuição do fluxo de água provocou o acúmulo gradativo de sedimentos nos leitos dos rios. Houve assoreamento de locais de desova, perda de hábitats naturais de alimentação e refúgio, além da dificuldade para migrar, uma etapa fundamental do ciclo de vida dos peixes.
No entanto, ingleses, franceses, holandeses e espanhóis bascos logo aprenderam a pescar em suas águas costeiras e mais tarde, também passaram a se aventurar em águas distantes e profundas, competindo pelo comércio da pesca no Mar do Norte. Durante séculos a prática do arrasto de fundo com redes e porta e a pesca com espinhéis era praticada por barcos a vela. Os peixes eram mantidos frescos dentro de tanques de água renovável no porão por semanas até chegarem aos mercados portuários. A pesca, portanto, era limitada às condições de vento e marés e isso pelo menos mantinha protegida as populações em águas distantes e de navegação complicada. Em meados do século XIX a Revolução Industrial permitiu a construção de motores a vapor. Na Inglaterra, as locomotivas agilizaram o transporte de peixe fresco e até mesmo vivo dentro de vagões-tanque, expandindo para o interior do país o mercado de peixe marinho, antes restrito às cidades e vilas costeiras. Ao mesmo tempo, os barcos a vapor, agora não mais restritos às condições favoráveis de vento e marés, aumentaram o esforço e a capacidade pesqueira que se estendeu ainda mais para as regiões de dificil acesso pelos barcos de pesca movidos a vela até então, ampliando as zonas de pesca.
Mas muito antes, nos séculos que seguiram o ciclo dos descobrimentos (isto é Colombo, Cabral, etc) a voracidade e expansão do comércio pesqueiro da Europa iniciou um novo ciclo no Atlântico Noroeste. Os exploradores europeus financiados pelos seus reinos e mercadores mais abastados não vieram apenas a procura de ouro, pedras preciosas e madeira, como sempre aprendemos nos cursos de História. Vieram também atrás de peixes e sobretudo, mamíferos marinhos para atender o comércio de alimento e manter acesas suas lamparinas com óleo de baleia.
A baleia foi a primeira commodity da história do comércio global. A carne desses animais era salgada para consumo; a banha era usada na fritura e conservação dos alimentos; as barbatanas bucais eram usadas em armação de vestidos e espartilhos, que moldavam os corpos femininos asfixiados da corte européia; os intestinos davam o âmbar, o principal fixador de perfumes; toda a iluminação pública e doméstica nas capitais e vilas da Europa era feita a base de óleo de mamíferos marinhos, bem como a lubrificação de ferramentas e máquinas da Revolução Industrial. Ironicamente, se não fosse a descoberta do petróleo, hoje o maior vilão da contaminação atmosférica e das mudanças climáticas globais, talvez nós não veríamos mais nenhuma baleia ou foquinha sequer no Animal Planet. Só os seus esqueletos e pinturas expostas nos museus de história natural.
A caça baleeira começou nos séculos IX e X nos mares frios da Europa e da Escandinávia. Inicialmente era praticada somente na costa, tal era a abundância de baleias nas águas do Mar do Norte e a facilidade em avistá-las. O declínio das populações costeiras obrigou a caça a se aventurar em águas mais distantes e profundas, usando embarcações baleeiras adaptadas. Por volta do século XVI, quando o Brasil tinha acabado de ser descoberto, as baleias já eram raras nos mares da Europa e Escandinávia. As tentativas de descoberta de uma passagem pelo Oceano Ártico para acelerar o comércio entre a Europa e a China, na época o maior mercado de especiarias, sedas, peles e tudo o que interessava a sociedade européia de então, trouxe a notícia da fartura nos mares do Novo Mundo. Registros dos exploradores da época mencionam milhares de baleias em baías e fiordes do Atlântico Noroeste e do Oceano Ártico canadense, onde se concentravam para reproduzir.
Centenas de barcos transportando hordas de caçadores para a Terra Nova chegavam da Europa entre os meses de abril e maio em busca de carne e banha de baleias e de pequenos mamíferos de fácil captura. Acampamentos provisórios de processamento de óleo de baleia na região, outrora restritos aos povoados vikings na Groenlândia, se multiplicaram na América do Norte ao lado das colônias de reprodução. Milhões de baleias e focas foram caçadas e suas banhas, couro e carne foram transportadas para a Europa entre os séculos XVI e XIX.
Não se iludam que o homem medieval e renascentista não era capazes de provocar os mesmos impactos ambientais que fazermos hoje. Peixes e a maioria da megafauna marinha vêem sendo caçados e ameaçados de extinção em função dessa história de exploração e comércio global séculos atrás, e não apenas nos dias de hoje como se pensa. Nossos tatara-tatara-tataravós não dispunham da tecnologia de sonar, barcos fábricas, redes gigantescas e os espinhéis quilométricos que temos hoje. Mesmo assim, provocaram o maior declínio de estoques globais de recursos vivos marinhos que se tem notícia. Nossa visão de que a indústria moderna da pesca oceânica foi capaz de exterminar nos últimos 100 anos cerca de 90% dos estoques pesqueiros mundiais é destorcida. Na verdade acabou com 90% do que havia sobrado no início do século XX após o início da pesca comercial na Idade Média. Hoje quando vemos uma tartaruga nadando ou algumas poucas baleias em Abrolhos, fazemos um auê!! e gastamos todos nossos megabytes nas fotos de um ou outro rabo de jubarte.
A capacidade de predação do ser homem é insuperável. Após ter acabado de exterminar a maior parte da megafauna terrestre lá atrás no período neolítico, chegara a vez da megafauna marinha. Nos 1000 anos entre a Idade Média e o começo do século XIX a população mundial de baleias, focas, morsas e elefantes marinhos já estava reduzida a cerca de 10% dos estoques anteriores ao “antropoceno”.
Portanto, eu cada vez mais me pergunto: o que exatamente estamos protegendo com os movimentos conservacionistas, os defesos, as limitações de quotas, a criação de AMPs e outras medidas paliativas de gestão pesqueira? O que sobrou depois de séculos de exploração nos Oceanos de todo o planeta? Se for assim, precisamos fazer mais do que apenas lutar pela conservação da vida marinha que restou. Precisamos recuperar pelo menos parte do que já se perdeu e resgatar um pouco da biodiversidade marinha que nos foi legada pela natureza. Esse é o nosso maior desafio.
17 Mar 2011, 14:44
var idcomments_acct = "618c5e50935dd909a2e2628b9d6ea860";var idcomments_post_id = "a_historia_de_um_mar_vazio";var idcomments_post_url = "http://www.oeco.com.br/frederico-brandini/24884-a-historia-de-um-mar-vazio";
Nenhum comentário:
Postar um comentário